Toca o celular. Aparece “número restrito”, só pode ser entrevista. Atendi, a moça disse entrevista às 9h, na pressa eu aceitei. Agora além de acordar cedo, vou ter que desmarcar o dentista. Começa, mais uma vez a preparação para entrevista. Roupa social passada, jornal da semana lido e o site da empresa também. Agora porque 90% dos locais de trabalho ficam longe de casa?
Na recepção a atendente com fone de telemarketing, já até espero o: “me empresta um documento por favor.”. Nunca usei uma webcam, em compensação tenho dezenas de fotos com ela em todos os prédios por aí. Subo, acho o lugar sento e espero. O mercado é grande, há centenas de locais para trabalhar, mas você sempre encontra aquele rosto familiar nas entrevistas, seja o cara do seu lado que já trabalhou em 2 multinacionais e passou os últimos meses morando no exterior, ou do outro lado, segurando o seu currículo, de 3 oficinas e um curso de fotografia. E é o que acontece, do meu lado está aquele cara da faculdade, que eu só via pelos corredores. Na dinâmica deu para perceber que ele fala bem melhor que eu. Menos tímido e nervoso talvez. Na minha frente está a loira que na dinâmica disse que aprendeu e tirou lições mesmo de momentos adversos da vida dela. A competição está dura.
Chamam o meu nome. Finalmente após prova online, dinâmica, painel, chegou a entrevista. Cara a cara. A hora de você valer a frase “fui com a cara dele”. Eu tento parecer o mais profissional possível, mas na pressão já falei 3 vezes “tipo”, sendo que uma delas foi a combinação “tipo assim”.
Perguntou qual o meu defeito. Calma, você já fez várias entrevistas, essa tá fácil: Perfecionista. Pela reação dele, dá para perceber que não fui o primeiro a dizer essa. Bom, vamos tentar descobrir o que ele espera de quem vai ser contratado e vamos ver se eu consigo me transformar e ser O cara.
A vaga é para trabalhar na gestão de logística dos amortecedores de caminhão. Não é exatamente, quer dizer não é o que eu queria trabalhar, mas fazer o que a vaga para trabalhar com cerveja e carros de luxo já foi preenchida. Fora que eu odeio caminhão! Como aquilo atrapalha o trânsito e faz uma fumaça. Vou dizer que trabalhar com B2B deve ser muito interessante, ver o outro lado, blá blá.
Acho que estou indo bem. Agora faça ele falar sobre outra coisa, filme? Boa, ele ta falando. Agora quer saber se eu vi “Uma verdade inconveniente”. O que quê isso tem a ver? Faz anos que já saiu o filme. Menti, disse que já vi , afinal é um treco lá de vamos salvar o mundo, somos verde e reciclamos. Vamos mudar de assunto, ele é homem. Pô futebol! Ele é palmeirense. Mas isso nós não mentimos! Sou são paulino, tri mundial! Humm, falando desse jeito ele pode ter me achado meio arrogante.
Agora me perguntou onde me vejo daqui a 10 anos. Se eu falar a verdade que é não sei, ele vai pensar que eu sou um cara sem objetivo. Vou falar que me vejo crescendo nessa empresa. Essas perguntas são muito estranhas. Quem é que vai dizer que é desorganizado, não é pró ativo, não assume responsabilidades? Que não vai chegar às 8 em ponto, que realmente vai fazer 1 hora de almoço? Ou quem não diria que vai ficar trabalhando até tarde?
Acho que a entrevista ta acabando. Seco as mãos suadas de nervoso nas coxas mesmo porque lá vem o aperto de mão. Não, não vou sair assim. É a minha décima entrevista, passei por um monte de dinâmica, prova e sei lá o que mais. Sempre tentei ser o cara perfeito para a vaga, mas eu não sou perfeito. Vou falar a verdade: “Desculpa, só queria dizer antes de ir que: eu provavelmente não sou o cara mais inteligente, nem o com maior experiência que o senhor vai entrevistar. Eu também sei que todo mundo vem aqui e faz de tudo para conseguir o emprego. Mas eu vou ser sincero. Eu não posso fazer tudo. Eu não posso dizer que não vou me atrasar. Não posso dizer que vou passar todas as noites aqui. A verdade é que eu sei que posso dar o meu melhor pelo trabalho. Mas eu sempre vou considerar trabalho. Nunca a prioridade da minha vida. Eu quero sair para ver o jogo com meus amigos. Eu quero chegar em casa a tempo do Jornal Nacional, não que eu vá ver, mas que eu saiba que posso escolher não ver. Bom, acho que já falei demais. Até logo.”
Nos dias seguintes passei com um remorso sem igual. Não sei o que me deu na cabeça. Só aguardava aquele típico “infelizmente a vaga foi preenchida. Agradecemos a sua atenção e ficaremos com seu currículo para o futuro”. É como ouvir de uma garota, “não podemos estragar a amizade, né?”.
Depois de alguns dias recebo a ligação de que fui contratado, quando na verdade acho que consegui finalmente, me vender.
1 Comentário:
Hahahah muito bom o texto!
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